Se eu quisesse comentar aquilo em que, nos dias de hoje, se tornou o dia 1º de Maio e as comemorações a ele associadas, faria aqui outra transcrição de Milan Kundera sobre a Grande Marcha e o kitsch de esquerda. Ficará para outro dia
Hoje prefiro lembrar o 1º de Maio de há 30 anos. Explosão de uma alegria que não cabia no peito, canções revolucionárias, bandeiras vermelhas, punhos cerrados ou dedos em V, cravos nas mãos de toda a gente, braços estendidos para tocar os militares que passavam, sentimentos múltiplos à flor da pele! Eu estive lá, naquela Avenida Almirante Reis pavimentada de gente, e ainda hoje digo que foi o único dia de alegria sem mancha da minha vida. Pura alegria, pura exaltação! O 25 de Abril foi diferente. Emocionado, angustiado. Mas aquele 1º de Maio, o primeiro e o último dia em que todos tivemos a mesma voz, nunca o hei-de esquecer.
Eu era jovem e sem pressentimentos de mau agouro. O futuro havia de ser sempre assim. Mas quero deixar aqui as palavras de alguém que, com a sabedoria da idade, teve a premonição do futuro:
Coimbra, 1 de Maio de 1974 . Colossal cortejo pelas ruas da cidade. Uma explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças da repressão remetidas aos quartéis.
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Segui o caudal humano, calado, a ouvir vivas e morras, travado por não sei que incerteza, sem poder vibrar com o entusiasmo que me rodeava, na recôndita e vã esperança de ser contagiado. Há horas que são de todos. Porque não havia aquela de ser também minha? Mas não. Dentro de mim ressoava apenas uma pergunta: em que oceano de bom senso iria desaguar aquele delírio? Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança?
A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez
Miguel Torga, in "Diário XII"