Quinta-feira, 25 de Março de 2004
O despertador tocou. Teve consciência do seu acordar ,sem abrir os olhos. Sabia que tinha saído dum sonho estranho mas agradável. O que seria? Lentamente abanou o marido e disse-lhe: são horas, enquanto lá no fundo da sua luta para vir à tona de água, pensava naquele hábito detestável de ter que ser ela a acordá-lo. Ao fim daqueles anos todos
Ouviu-o levantar-se e os sons difusos da água a correr. As filhas ainda dormiam. Forçou-se a abrir os olhos e, de repente, aquela recordação escondida lutou para vir ao de cima. Não! Lembrou-se que era o dia do aniversário dum amigo que se tinha perdido nos meandros da política. Sorriu levemente, recordando a pessoa fantástica que ele era e os bons tempos que tinham passado, quando trabalhavam juntos há tanto tempo
Alguns cargos importantes mais tarde, ela já não sabia se ele era a mesma pessoa. Mas ia mandar-lhe uma mensagem, embora ele se tivesse esquecido dos anos dela e não lhe tivesse respondido no Natal
Mexeu-se desconfortavelmente na cama. Não gostava de se lembrar do que a ambição e a sede de poder fazem às pessoas.. Ia mandar a mensagem, de qualquer forma. Levantou-se, despediu-se do marido que estava quase pronto para sair e enfiou-se no duche, deixando que a água a escorrer pelo corpo fosse o primeiro prazer da sua manhã. No duche foi-se lembrando do que tinha para fazer naquele dia. Não se preocupou muito. Como a memória já não era como dantes, tinha ganho o hábito de fazer uma lista, à medida que se ia lembrando. Quando chegasse ao trabalho, a lista estaria lá. Lutou mais uma vez com aquela recordação. Ah não, estragar o duche, nunca! Saiu do banho, fez uma pintura rápida (aquela vaidade que não a deixava vir para a rua sem maquilhagem
), vestiu-se, achou que estava muito escura e procurou um lenço colorido (assim estava melhor). Enquanto bebia uma caneca de leite e via as notícias na televisão, olhou para o relógio para ver se estava atrasada. Sabia que, sem trânsito, se punha no emprego em 5 minutos. Fazia parte da sua qualidade de vida, viver perto do sítio onde trabalhava e não ter que ir à cidade, a não ser para aquelas reuniões imprescindíveis. Disse até logo às filhas e saiu. Não costumava comprar o jornal, a não ser ao fim de semana. Tinha ganho o hábito de ler os jornais on-line. Foi directa para o trabalho com aquela recordação a ameaçar estragar-lhe a manhã. Pediu que lhe trouxessem o correio, fez um despacho rápido, foi buscar um café que trouxe para o gabinete e leu a lista. Tinha um série de assuntos pendentes a tratar com aquelas moças (tão novas, faziam-lhe lembrar ela própria quando tinha entrado). Sorriu. Gostava de trabalhar com gente nova. Tinha muito para lhes dar e elas não a deixavam acomodar-se. Assim é que devia ser. O dia prometia ser bom, sobretudo se a chefia de topo não resolvesse arranjar algo para o estragar. E pensou que ia ter que fazer alguma coisa, quanto àquela recordação. Nunca gostara de assuntos mal resolvidos.
Quarta-feira, 24 de Março de 2004

Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
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Sophia de Mello Breyner
Terça-feira, 23 de Março de 2004
Hoje de manhã estive numa reunião cujo objectivo era de certa forma divulgar a imagem dum Ministério e fazer passar a mensagem das suas políticas. Por princípio, embirro com reuniões, grupos de trabalho, etc. Mas gosto de trabalhar em grupo. Parece contraditório, mas talvez não seja. Num grupo de trabalho criado para
qualquer coisa, quem preside farta-se de falar, os que gostam muito de dizer coisas e perdem todas as ocasiões para estarem calados, também, e os outros ouvem, ou porque já sabem que aquilo não vai dar em nada ou porque não têm nada para dizer (motivo tão válido como qualquer outro). Quando se trabalha em grupo, há intercâmbio de ideias, cada elemento estimula o outro, é um pouco como os comentários aqui nos blogs (às vezes
).
Já me ia perdendo. Aquilo que eu achei mais graça na reunião foi quando alguém falou de ruralidades, como um tema que devia ser explorado. Ruralidades
faladas numa bela sala do Terreiro do Paço, por gente desejosa de se ir embora para almoçar. Pois, ruralidades serão, em princípio, iniciativas interessantes no mundo rural. Como não se pode produzir, há que diversificar. Então vamos lá , para agradar ás opções políticas da UE, investir em artesanato, bordados regionais, gastronomia regional (desta eu gosto!), etc. E divulgar os investimentos, claro. Acho mal? Não. Só que, se as opções políticas da UE mudarem e de repente for necessário produzir
gambosinos, lá se vão as ruralidades à vida. Isto é por modas. Há que gerir os subsídios, abanando a cauda perante quem os dá. Por mim garanto que vou ao Google á procura de ruralidades. Sempre quero ver o que a pesquisa dá
Segunda-feira, 22 de Março de 2004

"...É uma mulher grossa
e no côncavo do corpo
fala línguas
sem sentido.Deixou secar os coentros
a salsa
e a hortelã.Chama-se cão
e ladra à lua.Vive atada
às chamas que a consomem."
Mulher Cão (sobre um quadro de Paula Rego)(José Fanha , in Marinheiro de outras luas)
"Pinto para dar um rosto ao medo" , Paula Rego
Domingo, 21 de Março de 2004

Aqui ainda podemos esquecer-nos
aqui ainda podemos fechar os olhos e sonhar
aqui ainda podemos ignorar voluntariamente
o dragão pela noite
Aqui ainda podemos fingir de homens
aqui ainda podemos sorrir como se nada fosse
aqui ainda podemos jogar obsessivamente o xadrez
Aqui ainda podemos ter pequenas ambições
aqui ainda podemos ser pequenos em tudo
aqui ainda podemos cruzar inteligentemente os braços
Aqui ainda podemos estar mortos e ler o jornal todos os dias
aqui ainda podemos responder a anúncios
aqui ainda podemos ter um tio nas Américas
Aqui ainda podemos ter um rádio portátil
aqui ainda podemos gostar de futebol
aqui ainda podemos ter uma amante oculta
Aqui ainda podemos ir cedo para casa
aqui ainda podemos estar no café com os amigos
aqui ainda podemos ter um jeito marítimo
Aqui ainda podemos
em silêncio esperar
Daniel Filipe(poeta de Cabo Verde, 1925-1964)