Quinta-feira, 22 de Abril de 2004

Saí do autocarro e entrei no Técnico. Não havia ninguém a quem entregar o cartão e notei um grande grupo que se agitava lá ao fundo, ao pé do edifício principal. A confusão era grande e a única coisa que consegui perceber foi que o director tinha sido expulso e perseguido até à saída. Os cartões, os famigerados e odiados cartões, estavam a ser destruídos e preparava-se uma reunião de alunos, ali mesmo, com os que estavam. Havia um clima de euforia no ar e as vozes dos que queriam falar começaram a ouvir-se. Tudo o que disseram eu já tinha ouvido. Concluiu-se que era necessário marcar uma reunião com todos os que quisessem assistir. Os estudantes tinham que tomar a universidade nas suas mãos e mudar tudo, pois claro
Como éramos jovens e ingénuos!
Entre os muitos vivas e abaixos, comecei a reparar que, mesmo ali, havia ainda no rosto de alguns o espanto e o medo de falar. E também o clima de suspeição: aquele é PIDE! pairava no ar. Ia ser difícil andar para a frente, sem dúvida
Mas, naquele dia, nós podíamos tudo. Éramos invencíveis.
De repente alguém gritou eles vêm aí, lá em baixo!, e todos descemos para ver o que se passava. Eles eram quatro militares num jeep enfeitado com cravos. Quando pararam ao pé de nós, um estudante saiu do grupo e, com algum tremor na voz, perguntou: Vocês não estão aqui para nos bater, pois não?. O sorriso do outro lado deu a resposta. Um pouco nervoso e com um discurso claramente repetido disse: Não vamos bater em ninguém. Vão para casa, não arranjem confusões aqui. E seguiram, imagem idealizada de flores a sair das espingardas. Naquele dia, também eles eram invencíveis.
Quarta-feira, 21 de Abril de 2004

Entre 1958 e 1974, as estatísticas oficiais registam que cerca de 1,5 milhões de indivíduos tenham abandonado Portugal.
Vão-se os homens desta terra.
Ficam cabras sem pastores
ficam terras sem seus donos.
Fica no ar um soluço
na parede uma guitarra.
Às vezes uma espingarda.
E nas mãos das mulheres
ficam sombras sombras sombras.
Às vezes uma rosa.
Às vezes coisa nenhuma.
Manuel Alegre, excerto do poema "Vão-se os homens desta terra"
Terça-feira, 20 de Abril de 2004

Saí cedo. A excitação era muita e tinha que ir ao Técnico, ver como estavam as coisas. Afinal a vida não parava. Estava no último ano, já atrasada por um ano de curso geral de cinema e pelo tempo que o Instituto tinha estado fechado após as entradas meiguinhas da polícia. Além disso queria encontrar a malta. Que estariam a fazer, que mudanças iria encontrar?
No comboio, olhei as pessoas porque esperava que estivessem diferentes. Havia um clima estranho, de tensão, como se toda a gente quisesse falar mas não soubesse exactamente o que podia ou não fazer. O medo, pensei, o medo vai levar tempo a desaparecer. E senti a segunda sensação de desapontamento, após o dia anterior. A primeira tinha sido ao ver na televisão aquela Junta de Salvação Nacional. Tinha tido um aperto no peito, um pressentimento esquisito que mandara para longe. Não era dia para isso! Tirei o passe e olhei o meu cartão do Técnico. Aquele rectângulo plastificado era a solução que tinham encontrado. Deixávamos o cartão à entrada e íamos buscá-lo à saída. Como se estivéssemos numa prisão de alta segurança
O comboio aproximava-se do Cais do Sodré e comecei a ouvir um barulho, pareciam gritos vindos da plataforma de chegada. Quando ia a sair, as lágrimas saltaram-me dos olhos sem que eu pudesse fazer nada. Os miúdos, os putos da rua do Cais do Sodré gritavam em coro para as pessoas que saíam do comboio: O povo unido jamais será vencido!. O meu coração disparou e comecei a perceber que a diferença tinha começado naqueles que nada temiam. A voz do Chile martirizado estava na boca dos meninos de Lisboa.
Segunda-feira, 19 de Abril de 2004

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Oh Liberdade!
Domingo, 18 de Abril de 2004

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia