Domingo, 4 de Abril de 2004
E, coisa estranha, incrível: nunca se sentira tão feliz. Nada poderia agora ser bastante lento; nada durar de mais. Nenhum prazer poderia igualar-se, pensava, endireitando uma cadeira, recolocando o livro na estante, a isto de haver terminado com os triunfos da juventude, de se haver perdido na corrente da existência, para encontrar a vida, com um choque de alegria, quando o Sol nascia, quando o Sol se punha.
Virginia Woolf, Mrs Dalloway
Lendo o livro e lembrando o filme "As Horas " de Stephen Daldry
Sábado, 3 de Abril de 2004

"Agora o principezinho sentia-se tão irritado que até estava branco.
- As flores fabricam espinhos há muitos milhões de anos. Apesar disso, as ovelhas comem flores há muitos milhões de anos. E vens-me tu agora dizer que tentar perceber porque é que elas têm tanto trabalho a fabricar espinhos que nunca lhes servem para nada não é uma coisa séria! Que a guerra entre as ovelhas e as flores não é uma coisa importante! Não será uma coisa bem mais séria e bem mais importante do que as contas de um senhor muito gordo e muito encarnado? E se eu, eu que aqui estou à tua frente, conhecer uma flor única no mundo, uma flor que não existe em mais lado nenhum senão no meu planeta e que, numa manhã qualquer, uma ovelhinha pode reduzir num instante a nada, assim, sem sequer dar por isso, também não tem importância nenhuma, pois não?
Corou, mas não se calou.
- Amar uma flor de que só há um exemplar em milhões e milhões de estrelas basta para uma pessoa se sentir feliz quando olha para elas. Porque pensa: "Ali está ela, lá no alto, a minha flor.." Mas se a ovelha comer a flor, para essa pessoa é como se as estrelas se apagassem todas de uma vez! Mas isso também não tem importância nenhuma, pois não?
...
Adeus - disse a raposa - Vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos..."
Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho
Sexta-feira, 2 de Abril de 2004

Na minha idade madura,
a vida a escorrer pelos dedos
Vejo no tempo antigo
Mares em que naufraguei
Fogo em que já ardi
Veredas que já pisei
Na minha matur(a) idade,
alma a transbordar no peito
Sonho o tempo que virá
Lagos de águas tranquilas
Chamas de terno langor
Caminhos de sol e sombra
Sempre eu
Inteira
No tempo de ontem
Ou de amanhã
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Quinta-feira, 1 de Abril de 2004

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro
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Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.
Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.
E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.
Natália Correia, O livro dos amantes
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