Quinta-feira, 6 de Maio de 2004

Procura-se um amigo

Friendship5.jpg

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para se ter a consciência de que ainda se vive.



size=2>Vinicius de Morais
publicado por lique às 19:42
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Quarta-feira, 5 de Maio de 2004

Heróis pela negativa

no-justice.gifSomos um povo triste. Só mesmo os franceses para dizerem que “les portugais sont toujours gais”. Não sei para que portugueses estavam eles a olhar quando inventaram esta. Somos um povo que raramente se assume colectivamente e se motiva para um projecto comum. A não ser… a não ser que exista algum herói, algum exemplo, alguém extraordinário a seguir! Nós precisamos de heróis como de pão para a boca. Precisamos de pessoas que apareçam nos media, nos façam reagir desta triste apatia e nos mobilizem.
O grave problema do nosso tempo é a falta de heróis positivos. Onde andam os descendentes de todos aqueles que nos guiaram em alguma época? Digo isto porque nós só vamos lá (onde?) guiados…Na classe política, não vejo nem sequer ao longe ninguém indicado. Temos sempre o futebol, mas aí só o FCP se candidata e dificilmente obtém consenso nacional.
Então, na falta de heróis pela positiva, começaram a surgir os heróis pela negativa. Só assim eu consigo entender as manifestações de apoio e desagravo a pessoas como Vale e Azevedo, Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro, Carlos Cruz e outros acusados no processo Casa Pia. Só assim eu entendo que as pessoas esperem à porta desta gente para os abraçar e mostrar a sua solidariedade às esposas e aos filhinhos(as) chorosos.
Só assim posso perceber aquele arraial dos media ontem à noite e o facto de, hoje de manhã bem cedinho, estarem todos prantados em frente da casa de Carlos Cruz, à espera de, como dizia o repórter da SIC Notícias, “terem a sorte dos colegas do Norte quando o major Valentim Loureiro veio em pijama cumprimentar os jornalistas”. Já nem quero lembrar aquela vergonhosa recepção a Paulo Pedroso na Assembleia da República…
O fenómeno é apartidário, começa a ser nacional, no sentido de que não se limita aos caciques locais, e, digo eu, é preocupante. Se a justiça os considerar culpados, o que vai acontecer? Será que os que os consideram heróis perseguidos vão crucificá-los logo a seguir? E se a justiça os inocentar? Será que vão crucificar as vítimas? Isto de ser herói pela negativa, tem que se lhe diga!
publicado por lique às 17:58
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Terça-feira, 4 de Maio de 2004

A D. Fátima (ou o meu dia de ser mázinha)

woman.gifA D. Fátima trabalha há muitos anos no mesmo organismo que eu. É daquelas pessoas que passam por nós sem repararmos nelas. Talvez para compensar isso, fala pelos cotovelos e repete indefinidamente coisas que não interessam a ninguém (quem disse que devemos ser solidários?).
Durante estes anos todos, na minha completa indiferença, a D. Fátima não me incomodou, não me despertou curiosidade. Não gostava dela nem deixava de gostar.
Ultimamente, o trabalho que faço aproximou a D. Fátima de mim. E quando ela entra no meu gabinete com o correio, já vem invariavelmente a dizer:

- A Srª Engª desculpe, hoje isto está muito atrasado, já cheguei tarde, ontem tive que ir com a minha mãe ao hospital, isto está muito mau..

Eu não a oiço, não consigo e só respondo:

- Deixe lá, não tem importância, deixe ficar aí…

Ela continua:

- Hoje não é muito, se calhar estou a atrasá-la, mas a minha mãe…isto é um problema, eu sozinha não posso tomar conta dela…

Céus, que tenho eu a ver com a mãe dela ? Que mania de trazer os problemas pessoais para o trabalho… Isto não é nenhum consultório de psiquiatria.
Os meus pensamentos cavalgam enquanto ela conta todas as desgraças da mãe, da filha, do marido… Ah não, tenho que acabar com isto!

- D. Fátima desculpe, deixe-me lá o correio porque eu vou ter uma reunião daqui a bocado.

Funciona sempre. A palavra reunião é mágica.

- Desculpe, Srª Engª, pois claro mas é que isto está muito mau…

E vai saindo, sem parar de dizer o quão mau aquilo está.

Quando entro na sala dela, a D. Fátima está sempre a ler a Maria ou qualquer outra revista do género. Nem se preocupa em disfarçar, poisa a revista de lado e pergunta:

- A Srª Engª quer alguma coisa?

Enquanto lhe dou os papéis que levo , vai dizendo:

- Já viu bem esta desavergonhada? Agora vem para a revista dizer que não anda com aquele loiro… aquele. Isto é tudo uma pouca-vergonha. Ainda por cima é casada! É como na televisão, já nem consigo ver aqueles programas, que horror!

Deve papá-los todos, telenovelas e reality-shows, quanto mais não seja para poder comentar! Ai, é preciso ter paciência!

- É verdade, é , a gente já nem sabe o que há-de ver ou ler, Srª Engª. Não acha?

O “não acha” é a minha deixa e, conforme os dias, ou digo:

- Hum,.hum…

ou, quando estou excepcionalmente bem disposta:

- Mas oh D. Fátima, não acha que ele também não é flor que se cheire?

Para não me armar em compreensiva, levo logo a resposta:

- Ai, mas ele é homem, nada lhe fica mal, agora ela…

Aí resolvo que tenho algo de muito urgente para fazer e saio porta fora.

Pergunto-me porque é que as D. Fátimas deste mundo me incomodam tanto, quando entram no meu círculo mais próximo. Será só porque sou uma burguesa snob e elitista, com manias de intelectual? Quem sabe…
publicado por lique às 21:12
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Segunda-feira, 3 de Maio de 2004

Filhos da época

szymborska.gif

Somos filhos da época
e a época é política.

Todos os teus, nossos, vossos
problemas diurnos e nocturnos
são problemas políticos.

Quer queiras quer não,
os teus genes têm passado político,
a pele um tom político,
os olhos um aspecto político.

O que dizes tem ressonância,
o que calas tem expressão,
seja como for, política.

Mesmo passeando pelo campo,
dás passos políticos
em solo político.

Poemas apolíticos são também políticos
e lá em cima brilha a lua,
unidade que deixou de ser lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Que questão, diz, querido.
A questão política.

Nem é preciso ser humano
para ganhar importância política.
Chega que sejas petróleo,
ração composta ou matéria reciclável.

Ou a mesa de debate,
cuja forma foi discutida meses a fio:
em que mesa se negoceiam a vida e a morte?
Redonda ou quadrada?

Enquanto pereciam homens,
morriam animais,
ardiam casas,
tornavam-se os campos bravios
como nos tempos antigos
e menos políticos.


Wislawa Szymborska, Alguns gostam de poesia. Antologia



A autora é polaca e recebeu o Prémio Nobel em 1996. O livro, com poemas de dois autores polacos e tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves, foi-me dado pelas filhotas no dia da mãe.

publicado por lique às 17:45
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Domingo, 2 de Maio de 2004

Paris, só na Primavera

seine2.jpg

Quando chega a Primavera e a doçura se espalha no ar, lembro-me sempre de Paris. Durante anos, ocupações profissionais levaram-me até lá, nesta altura do ano :Abril/Maio. Viajei até outros lugares, mas aquela cidade entrou-me na pele, passou a ser a minha segunda cidade. Em lugar algum do mundo me sentia como ali. Lembro cada passo dado no bairro onde fica o hotel em que me hospedava. Lembro o caminho feito a pé de manhã sobre aquela ponte do Sena. A luminosidade de Paris (cidade feminina, de certeza…) vista sobre o Sena, não tem igual. Lisboa tem luz mas o rio não a atravessa. É essa a diferença. Um rio que atravessa uma cidade.
Várias vezes me perguntei a razão do meu apego àquela cidade. Podia alegar beleza, cultura, etc,. todos os chavões habituais. Mas percebi rapidamente que o meu prazer maior não era percorrer os museus, nem visitar os locais turísticos. Gostava de vaguear sem me afastar muito do rio, ir à Ile de St Louis, ao Quai St Michel, ao Quartier Latin ,misturar-me com as pessoas que passeavam e beber aquele ar. A doçura, a alegria, a luz daquele ar. Nem sequer achava os parisienses muito simpáticos para com os turistas. Não certamente como os portugueses (que o são até ao total exagero). Era a cidade que me fascinava, que me levava a pensar que adoraria viver ali.
Há cerca de quatro anos, tive que ir a Paris em Janeiro. O frio era insuportável, soprava um vento gélido e a cidade, a minha linda cidade, estava debaixo de um manto cinzento que não desaparecia. Os locais estavam todos lá e quase enregelei no Quartier Latin, á procura duma lojinha donde as minhas filhas me pediam sempre qualquer “petite chose”. Desejei em cada dia voltar para Lisboa, perguntando-me para onde tinha ido aquele ar que eu costumava beber. Enfiei-me no hotel, onde pelo menos havia calor e tomei um chocolate bem quente. Ao voltar, quentinha no avião, jurei a mim própria que, a Paris, só queria voltar na Primavera. E, claro, tive consciência do que já sabia: a magia dos locais tem sempre a ver connosco e com os momentos em que os visitamos.


P. S. A Ema lembrou-me de Paris e deu nisto...



publicado por lique às 23:55
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