Segunda-feira, 21 de Junho de 2004

No tempo da avó dela, os namoros traduziam-se, fundamentalmente, em missivas (cartas, bilhetes) que os namorados trocavam entre si. Sabido que o namoro presencial era bastante condicionado, a escrita era a única forma de expressar sentimentos, talvez até exagerados. Quando falava disso, interrogava-se sempre como seria conhecer intimamente uma pessoa sem quase ter falado com ela olhos nos olhos, sem quase a ter tocado.
Ela era uma mulher moderna. Gostava de tudo o que fossem novas tecnologias e utilizava a Internet, como instrumento de trabalho e de lazer. Desprendida e com um trabalho absorvente, nunca tinha dado muita importância a manter uma relação estável. Ele tinha entrado na sua vida através de uma conversa num chat. Descobriram interesses comuns, trocaram mails em que diziam algo de si próprios, nunca tudo. A verdade nua e crua é, normalmente, desinteressante. Entre eles foi-se desenvolvendo uma relação ambígua feita de insinuações, conversas de chat, mails quase diários. Um dia ele enviou-lhe um poema, dizendo que tinha sido ela a inspiradora. De certa forma aquilo incomodou-a porque naquele poema a mulher era vista como uma ninfa perfeita. Deu por si a olhar as modelos, os seus corpos perfeitos, os cabelos ao vento e pensou que aquelas mulheres podiam inspirar aquele poema, ela não. Ela era uma mulher vulgar, longe de qualquer perfeição. E não sabia escrever poemas daqueles, para responder. Disse-lhe exactamente isso no mail seguinte. Da parte dele, veio a resposta:
- Queres encontrar-te comigo?
Hesitou mas acabou por concordar. Descobriram que não moravam muito longe um do outro e combinaram encontrar-se num café. Levariam um livro que ambos possuíam para se reconhecerem. Ele chegou primeiro. Quando ela entrou, viu-o e achou que ele estava longe da imagem que tinha formado para si própria. Pensou em ir-se embora mas já que estava ali
Avançou para a mesa e viu nos olhos dele alguma surpresa, talvez decepção. Foi também nos olhos dele que reconheceu o homem que lhe escrevia poemas. A conversa foi penosa, arrastada. O tempo, a coincidência de morarem perto
E depois fez-se o silêncio. Constrangedor. Ela pensou que devia dar uma desculpa e partir mas, em vez disso, olhou-o outra vez com atenção. Procurou na mala um bloco pequeno e uma caneta e, sem sequer saber porquê, disse:
- Queres escrever-me um poema?
Os olhos dele disseram que sim.
P.S. Este texto é totalmente ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

Bloqueada por aqui
Palavras presas correntes
Vidas de apatia cinza
Objectos tão exclusivos
Exclusivamente objectos
Bloqueada por aqui
Mar sem maresia azul
Areia monotonia branca
Sol sem sumo de laranja
Laranja sem sol no sumo
Bloqueada por aqui
Poesia a querer voar
Voo a ser poesia
Quadro: William Harsh
Sábado, 19 de Junho de 2004

Excerto do Diário de Adão
Terça-feira
Estive a examinar a cascata. É o melhor do parque, penso. O novo ser chama-lhe Catarata do Niagara porquê? , não compreendo. Diz que
parece a Catarata do Niagara. Isso não é razão. É um mero devaneio e imbecilidade. Não posso nunca dar nome a nada. O novo ser dá nome a tudo que aparece antes de eu poder esboçar um protesto. E o pretexto é sempre o mesmo:
parece ser aquilo. Por exemplo um dodo, diz que, logo que se avista um, percebe-se que
parece um dodo. Vai ter de passar a chamar-se assim, sem dúvida. Desgasta-me tentar discutir sobre isso e nem vale a pena, de qualquer maneira. Dodo! Parece-se tanto com um dodo como eu!
Excerto do Diário de Eva
Quarta-feira
Agora estamos a dar-nos melhor, com efeito, e a conhecermo-nos cada vez melhor. Ele já não tenta evitar-me, o que é um bom sinal, e demonstra que me gosta de ter ao lado. Gosto muito disso e eu estudo para lhe poder ser útil todos os dias, sempre que posso, para subir na sua estima. Nos últimos dois ou três dias tirei-lhe dos ombros o fardo de dar nomes às coisas e isto deixou-o porque ele não tinha o mínimo jeitinho para isso e está-me muito grato por isso.
Quando apareceu o dodo ele pensava que era um gato selvagem vi-o nos seus olhos. Mas eu salvei-o. E fi-lo com o cuidado de não o ferir no seu orgulho. Limitei-me a falar alto de forma natural num tom de agradável surpresa, e não como se estivesse a tentar convir qualquer tipo de informação: Ora, se não é um dodo! e expliquei, como quem não está a explicar, como é que eu sabia que era um dodo e ainda que eu ache que ele ficou um bocado melindrado por eu saber que bicho era aquele e ele não, foi bastante claro que ele me admira.
Mark Twain, Excertos dos Diários de Adão e Eva
Sexta-feira, 18 de Junho de 2004
Transcrevo aqui com a devida vénia e um muito obrigada difícil de pôr em palavras o belíssimo poema que a Etérea do
Poemas de trazer por casa e outras estórias escreveu nos comentários ao meu post Reencontro. E aconselho quem quiser ler bons textos a visitar o blog. Com um beijinho grande, Etérea.
A noite é de tempestade nos teus olhos
Ouve-se o ralhar dos deuses
pressinto cada trovão
que antes
te vem beijar lique...
Tens uma vela acesa
Está mesmo ao teu lado
sobre a mesa
lutando
para não se apagar
Num momento é chama viva
no seguinte
quase desiste
mas resiste!
E não se apaga!...
É como nós e a vida
não se nos dá por vencida
e leva-nos
a acreditar.
Podias fechar a janela
acalmando assim a vela
tornando-lhe a vida fácil
Mas perdia a beleza
da luta
e da incerteza
Não
não vás fechar a janela
espera
Afinal
esta vela
está acesa
e o céu
começou a chorar!

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes
Sophia de Mello Breyner Andresen
Vamos para fim de semana e a ânsia de liberdade agarra-nos com mais força. Para todos os aqui pararem um pouco, as palavras da minha poetisa preferida.