Sábado, 5 de Junho de 2004

Na manhã de bruma o mar dissolve-se em cinza
A janela rasga o olhar sobre as praias abandonadas
A velocidade leva-me até ao rio original
Onde o sol hesita em planar sobre os barcos
Os cafés e os bancos olhando o rolar da água
O comboio abranda no cais antigo
Início e fim de muitas viagens
Despeja a multidão naquela outra máquina
Que veloz a larga no fim do caminho
Destino prosaico de todos e alguém
Naquela manhã, eu.
Filhos
Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
Vinicius de Moraes
Porque "hoje é sábado", porque me apeteceu lembrar quão importantes são para mim as minhas filhas e de como elas eram quando faziam estas tropelias todas de que o poeta fala.
Sexta-feira, 4 de Junho de 2004

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
Mário Cesariny de Vasconcelos, in Manual de Prestidigitação
Quinta-feira, 3 de Junho de 2004

Dossiers
perfilados na prateleira castanha
Ciclopes fitando-me
com o seu único olho
Páginas de dever
Pilhas desbotadas
de trabalhos infindos
A duração da vida
arrumada por assuntos
Ah! Abrir a janela
e deixá-los voar!
Quarta-feira, 2 de Junho de 2004

Faz amanhã três meses que abri este espaço. Não vou fazer estatísticas nem balanços esquisitos. Quero apenas dizer que tem sido uma experiência muito gratificante, não só pela descoberta de pedaços desconhecidos de mim mas sobretudo pelo contributo e pelas palavras enriquecedoras dos que por aqui passam. Para acabar com a lamechice e para vos agradecer, o post de hoje é a repeticão de um texto já aqui publicado nos primeiros tempos desta aventura . E é um pretexto para vos convidar para tomar um café (repito: o texto fala de café...).
Café
Primeiro sinto o aroma
Perfume conhecido, confortável
E ao mesmo tempo excitante
Como o perfume de um amante
Numa relação já estabelecida
Depois vem a urgência
De sentir o sabor
Beijo sabido e desejado
Doçura amarga que desperta
Sentidos adormecidos
E saboreio lentamente
Deixando durar o prazer
Até que só resta em mim
Aquele sabor tão antigo
Que põe no ar da manhã
Um convite para viver