O domingo amanheceu cheio de sol. D. Fátima já tinha resolvido no dia anterior que, se o tempo estivesse bom, iriam à praia. Quando o despertador tocou acordou o marido que ressonava. Ele olhou-a espantado e resmungou:
- Que é que tu queres a esta hora, mulher? Já um homem não pode dormir?
Pensou que ia ser difícil obrigá-lo a levantar-se, mas já tinha combinado com os filhos e estava tudo preparado. Não ia desistir. Abanou-o e lembrou-lhe:
- Ontem combinámos ir à praia.
Mas ele tinha-se virado para o lado e só lhe chegava o barulho da sua respiração.
Nada a ia fazer desistir até porque queria ver se conseguia ter aquela cor que as colegas lá no emprego ostentavam. Na segunda-feira, iam ver. Também ela iria poder contar como a água estava boa e quanto tempo tinha levado a lá chegar e
Resolveu telefonar ao filho e dizer-lhe que se apressasse porque era ele que iria a guiar. Do outro lado, a nora resmungou:
- Que chatice! Ele ainda está a dormir, mas eu vou acordá-lo. Deixe estar que já vamos.
Imaginou a nora a acordar o filho aos berros, porque a chata da tua mãe tinha que telefonar a esta hora. Amaldiçoou a estupidez de ter tirado carta mas nunca ter querido guiar. Agora dependia sempre dos outros.
Foi avisar a filha que ainda dormia e acabou de preparar o saco térmico com tudo o que era preciso levar: comida, uns sumos, iogurtes. Sabia que não iam trazer nada, confiando que ela arranjaria tudo para eles e para o neto. Aquele filho dela tinha arranjado uma mulher tão desleixada
Enfim, que remédio! Se ele gostava dela
Quando finalmente se puseram a caminho, D. Fátima sentiu-se feliz. Tinha conseguido. Ia sair naquele domingo. A lenta fila que mal se mexia, o sol que fazia o carro parecer um forno, os gritos do neto farto de nunca mais chegar, não a fizeram mudar de disposição.
Finalmente chegaram. Encontrar um local para pôr o guarda-sol não foi fácil. Instalaram-se e estenderam as toalhas que, pensou ela, até não eram nada más. Tinha sido ela a comprá-las na feira. Os outros foram logo tomar banho. Ela queria descansar um bocado ao sol e ler a Maria e outras revistas que tinha trazido. E ali, estendida na praia, sentiu-se bem pela primeira vez naquela manhã. Ia poder sossegar um pouco.
Sentiu pingos de água gelada nas costas:
- Vó, passa-me a toalha e dá-me uma sandes.
Aquele neto
levantou-se, deu-lhe a toalha, abriu o saco térmico e deu-lhe as sandes. O miúdo sentou-se na toalha, ainda a tremer da água fria e devorou a sandes. Ela deitou-se novamente.
- Então velha não vais à água?
- Vá, mãe, está boa, só custa um bocadinho a entrar.
Os outros tinham voltado. Dirigiu-se ao mar, mais para lhes fazer a vontade. Entrou na água e sentiu-se em paz. Não sabia nadar mas, ainda assim, aquela frescura a passar-lhe no corpo despertou-lhe sensações de prazer há muito esquecidas.
- Vó, vem lá embora, que a mãe não sabe abrir a caixa amarela que trouxeste!
O neto gritava à beira da água. Ela saiu e foi ter com eles lá acima. Abriu a caixa e estendeu-se ao sol. O miúdo corria à volta deles e atirava-lhe areia para cima.
-João, diz ao teu filho para estar quieto!
- Ora, mãe, as crianças são assim mesmo. Não queria, não tinha vindo connosco.
Tentou ler as revistas, esquecer a filha que namoriscava com dois rapazes (o que é que iria sair dali?), os gritos do neto que entretanto tinha atirado areia ao pai e levado a correspondente palmada, o ar de galdéria da nora que se untava toda e fazia olhinhos aos que lhe espreitavam o bikini. E esperou que aquela ida à praia acabasse.
Ao chegar a casa, depois de ter novamente levado horas na fila de trânsito, o marido estava a ver o futebol, sentado em frente à televisão.
- Vou-me deitar, estou cansada.
- Ora essa! Está aqui um homem sozinho todo o dia, a madame chega, nem pergunta quem está a ganhar e diz que se vai deitar! Vai mas é fazer alguma coisa para eu comer.
Foi. Deu-lhe o jantar e deitou-se. Adormeceu como sempre, enrolada sobre si própria.
No dia seguinte, contou às colegas como tinha sido boa aquela ida à praia e como os filhos e o neto eram delicados com ela. Graças a Deus, uns amores! Sabia que, quando lá fosse acima, a engenheira havia de lhe dizer:
- Então, D. Fátima, foi à praia? Está com um escaldão! Olhe que é preciso cuidado com o sol.
Não ia poder atirar-lhe com os papéis à cara. A mulher tinha mau feitio e ainda fazia queixa dela, ou pior. Ia só dizer-lhe que tinha conversado tanto com a família que até se tinha esquecido do sol.
Para quem não conhece a D. Fátima
Apesar de estar desiludida com o facto de não termos ganho o Euro, parece-me que, friamente, temos que considerar a campanha da selecção portuguesa muito boa. Lembremo-nos de quais eram as expectativas à partida. Pessoalmente não tinha nenhumas e não creio que o sentir colectivo fosse diferente.
E depois, o que ninguém esperava aconteceu. Perdemos o primeiro jogo e todos continuámos a acreditar que era possível e, de forma mais ou menos exuberante, mais ou menos patrioteira, todos nos unimos em volta desse sonho comum. Para mim, essa foi a faceta mais positiva do Euro. Também estou satisfeita por toda a organização ter corrido bem. Já que nos metemos nisto...
E agora? Agora este querer comum não pode ter acabado. Agora há outras batalhas nas quais temos que empenhar o nosso orgulho de ser portugueses. Já amanhã...
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto