A 6 de Agosto de 1945, às 8h 15m, foi lançada pelos americanos a primeira bomba atómica em teatro de guerra. A cidade atingida foi a de Hiroxima, no Japão. Hiroxima foi fundada em 1594 e em 1945 contava com cerca de 400.000 habitantes, tendo morrido directamente cerca de 80.000 pessoas e sido destruídos cerca de 90.000 edifícios numa área de 10,5 km2. Apesar desta primeira bomba atómica ter uma potência incomparavelmente inferior às actuais, ainda hoje se fazem sentir efeitos das radiações resultantes daquela explosão.
Esta demonstração de força, considerada desnecessária numa guerra praticamente ganha, poderia ter sido feita numa zona desabitada. O efeito seria o mesmo: mostrar, não tanto ao Japão mas mais à URSS, o poder militar dos Estados Unidos. Podemos e devemos interrogar-nos se a humanidade aprendeu alguma coisa desde esta triste data que hoje se evoca.
"Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
...."
Vinicius de Moraes, "Rosa de Hiroxima"
Escrevo no fio dos sentidos
Falo palavras precisas
Desfaço sonhos ao vento
Escrevo no fio das palavras
No limite da emoção
Procuro as letras precisas
Pra sentimentos não ditos
Contidos em sugestão
Sinto o passar dos sinais
Ao lado da realidade
Junto símbolos já sabidos
Conversas sons revelados
Ocultação da verdade
Falo para além dos sentidos
Duma vida alucinada
Baralho papéis em sonho
Construo castelos ao vento
Desfeitos de madrugada
Pressinto sempre que, subindo a montanha e afastando-me cada vez mais da básica realidade, consigo ver o mar, a praia, a aldeia, a cidade. Consigo ver-me. Se não houver névoa que me entre no olhar, talvez até consiga ver os outros. Será que vou poder ouvir os risos, lamber as lágrimas, sentir os carinhos? Se não chover no meu rosto, poderei agarrar a desilusão, virar o desânimo e ver o brilho do sol já ali, na colina ao lado? Talvez até, quem sabe, consiga alcançar essa colina. Não muito verde, colina de cores de um Outono inicial, com árvores douradas, sombra de prata e um fio de água azul insinuando-se entre pedras. Sei que, se lá chegar, não vou poder voltar. Ficarei ali, lançando raízes, construindo a casa, o quarto, a lareira. Serei eu, colina da minha vida-montanha. Mas será que sou capaz de subir até lá?
D. Fátima sabia que, no dia marcado, a engenheira iria de férias. Não se sentia propriamente satisfeita. Teria que levar todos os dias o correio ao Dr. Marques e, na verdade, ele conseguia ser mais desagradável com aquela mania de passar a vida a dizer:
- A senhora engenheira não lhe disse já que isto tem que chegar aqui tudo completo? Eu não acredito que ela admita que lhe leve o trabalho nestas condições!
Dava-lhe o raspanete a ela e aproveitava para mandar uma alfinetada à engenheira. Eles que se entendessem!
No último dia de trabalho, achou por bem dizer:
- Então boas férias Srª Engª, sempre vai para o Algarve? Eu vou em Agosto, se calhar só nos vemos em Setembro.
- Vou para o Algarve, sim. A sua colega estará cá quando eu voltar, espero! Tenha umas boas férias, também.
Era sempre assim. Nem ao menos tinha dito para onde ia. Parecia que só se preocupava com o trabalho.
Pensou que o filho também estava lá para o Algarve. Ela ainda tinha sugerido que, se ele quisesse, podia trocar as férias com uma colega e ir também. Parece que a casa era pequena, que talvez lá aparecesse um amigo deles e que não se iriam sentir à vontade se ela lá estivesse. Mas, afinal, porque não ir visitá-los no fim de semana.? Havia de arranjar um cantinho onde dormir, nem que fosse no chão. Telefonou-lhe e insistiu que chegaria no comboio na 6ª feira, à noite. Do lado de lá, houve um silêncio e , por fim, a resposta:
- Tá bem, mãe, eu vou buscá-la.
Quando chegou a casa, disse ao marido e teve a resposta:
- Ah vais, não é? Já decidiste, não foi? Eu não posso ir, combinei de ir pescar com o António. Faz boa viagem!
Quando o comboio chegou à cidade onde o filho estava, sentiu um cheiro doce no ar. Perguntou-lhe o que era.
- Sei lá, mãe, não noto cheiro nenhum.
Uma senhora que passava sorriu e disse:
- É a dama da noite, aquela planta, ali.
A dama da noite foi o seu primeiro encanto. Viu de relance o rio e a ponte romana e lá foi a toda a velocidade para a casa que o filho tinha alugado.
Levantou-se cedo e, com era hábito, preparou tudo para irem à praia. Ainda ouviu o filho dizer à nora:
- Se calhar devíamos ter trazido a minha mãe, sempre se comia na praia alguma coisa diferente de gelados e batatas fritas!
Gostou de ter que ir de barco e fez perguntas ao filho sobre a ilha.
- Sei lá, mãe, é a praia!
E na praia, quando olhava aquela imensidão de mar tão plano que mais parecia uma piscina, ouviu uma voz familiar. A engenheira! Tentou passar despercebida mas ela viu-a e veio na sua direcção (ainda duvidou se teria havido algum problema de última hora, no trabalho
)
- D. Fátima, por aqui?
- Ai, a Srª Engª até me assustou! Está tão queimadinha! Pois é, o meu filho está cá e convidou-me
- Está a gostar?
- Ainda não vi a cidade mas esta praia é um encanto! Pena haver tanta gente
- Olhe, se puder, dê uma voltinha na cidade. E se quer conhecer a ilha mais ou menos como ela era antes de vir para aqui toda esta gente, vá andando junto ao mar até bem lá ao fundo, onde já quase não há ninguém. Tem muito que andar, mas está maré vazia e garanto que vale a pena. Ah, se vir alguns nudistas, não se assuste! E se encontrar alguns pares de namorados não ligue que, no Paraíso, Adão e Eva também não se devem ter portado muito bem!
E, dando uma gargalhada, entrou no mar com uma das filhas. Nunca lhe tinha ouvido uma gargalhada assim, Tinha aquele riso de quem parecia estar sempre a troçar
Olhou a linha em que o mar beijava a areia, até lá bem ao fundo. O neto gritava qualquer coisa, atrás dela.
- Diz ao teu pai que tudo o que ele precisa está nos sacos que trouxemos. Basta procurar. A avó vai dar uma volta. Já venho. Vai, querido, vai.
Na areia molhada, as suas pegadas, ao princípio indecisas, foram-se tornando mais firmes. À procura do paraíso.
Querem saber mais sobre a D. Fátima e a engenheira? Podem fazê-lo
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