Segunda-feira, 5 de Julho de 2004

Domingo de praia (ou a explicação da D. Fátima)

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O domingo amanheceu cheio de sol. D. Fátima já tinha resolvido no dia anterior que, se o tempo estivesse bom, iriam à praia. Quando o despertador tocou acordou o marido que ressonava. Ele olhou-a espantado e resmungou:

- Que é que tu queres a esta hora, mulher? Já um homem não pode dormir?

Pensou que ia ser difícil obrigá-lo a levantar-se, mas já tinha combinado com os filhos e estava tudo preparado. Não ia desistir. Abanou-o e lembrou-lhe:

- Ontem combinámos ir à praia.

Mas ele tinha-se virado para o lado e só lhe chegava o barulho da sua respiração.
Nada a ia fazer desistir até porque queria ver se conseguia ter aquela cor que as colegas lá no emprego ostentavam. Na segunda-feira, iam ver. Também ela iria poder contar como a água estava boa e quanto tempo tinha levado a lá chegar e …
Resolveu telefonar ao filho e dizer-lhe que se apressasse porque era ele que iria a guiar. Do outro lado, a nora resmungou:

- Que chatice! Ele ainda está a dormir, mas eu vou acordá-lo. Deixe estar que já vamos.

Imaginou a nora a acordar o filho aos berros, porque “a chata da tua mãe tinha que telefonar a esta hora”. Amaldiçoou a estupidez de ter tirado carta mas nunca ter querido guiar. Agora dependia sempre dos outros.
Foi avisar a filha que ainda dormia e acabou de preparar o saco térmico com tudo o que era preciso levar: comida, uns sumos, iogurtes. Sabia que não iam trazer nada, confiando que ela arranjaria tudo para eles e para o neto. Aquele filho dela tinha arranjado uma mulher tão desleixada… Enfim, que remédio! Se ele gostava dela…
Quando finalmente se puseram a caminho, D. Fátima sentiu-se feliz. Tinha conseguido. Ia sair naquele domingo. A lenta fila que mal se mexia, o sol que fazia o carro parecer um forno, os gritos do neto farto de nunca mais chegar, não a fizeram mudar de disposição.
Finalmente chegaram. Encontrar um local para pôr o guarda-sol não foi fácil. Instalaram-se e estenderam as toalhas que, pensou ela, até não eram nada más. Tinha sido ela a comprá-las na feira. Os outros foram logo tomar banho. Ela queria descansar um bocado ao sol e ler a “Maria” e outras revistas que tinha trazido. E ali, estendida na praia, sentiu-se bem pela primeira vez naquela manhã. Ia poder sossegar um pouco.

Sentiu pingos de água gelada nas costas:

- Vó, passa-me a toalha e dá-me uma sandes.

Aquele neto… levantou-se, deu-lhe a toalha, abriu o saco térmico e deu-lhe as sandes. O miúdo sentou-se na toalha, ainda a tremer da água fria e devorou a sandes. Ela deitou-se novamente.

- Então velha não vais à água?
- Vá, mãe, está boa, só custa um bocadinho a entrar.

Os outros tinham voltado. Dirigiu-se ao mar, mais para lhes fazer a vontade. Entrou na água e sentiu-se em paz. Não sabia nadar mas, ainda assim, aquela frescura a passar-lhe no corpo despertou-lhe sensações de prazer há muito esquecidas.

- Vó, vem lá embora, que a mãe não sabe abrir a caixa amarela que trouxeste!

O neto gritava à beira da água. Ela saiu e foi ter com eles lá acima. Abriu a caixa e estendeu-se ao sol. O miúdo corria à volta deles e atirava-lhe areia para cima.

-João, diz ao teu filho para estar quieto!
- Ora, mãe, as crianças são assim mesmo. Não queria, não tinha vindo connosco.

Tentou ler as revistas, esquecer a filha que namoriscava com dois rapazes (o que é que iria sair dali?), os gritos do neto que entretanto tinha atirado areia ao pai e levado a correspondente palmada, o ar de galdéria da nora que se untava toda e fazia olhinhos aos que lhe espreitavam o bikini. E esperou que aquela ida à praia acabasse.

Ao chegar a casa, depois de ter novamente levado horas na fila de trânsito, o marido estava a ver o futebol, sentado em frente à televisão.

- Vou-me deitar, estou cansada.
- Ora essa! Está aqui um homem sozinho todo o dia, a madame chega, nem pergunta quem está a ganhar e diz que se vai deitar! Vai mas é fazer alguma coisa para eu comer.

Foi. Deu-lhe o jantar e deitou-se. Adormeceu como sempre, enrolada sobre si própria.

No dia seguinte, contou às colegas como tinha sido boa aquela ida à praia e como os filhos e o neto eram delicados com ela. Graças a Deus, uns amores! Sabia que, quando lá fosse acima, a engenheira havia de lhe dizer:

- Então, D. Fátima, foi à praia? Está com um escaldão! Olhe que é preciso cuidado com o sol.

Não ia poder atirar-lhe com os papéis à cara. A mulher tinha mau feitio e ainda fazia queixa dela, ou pior. Ia só dizer-lhe que tinha conversado tanto com a família que até se tinha esquecido do sol.



Para quem não conhece a D. Fátima

publicado por lique às 07:36
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60 comentários:
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 14:19
Lique, antes de mais, agradecida pelos comentários. Este texto...vou relê-lo.Parece-me que me apetece perceber porque não me sinto em acordo (ou "defensora") da "D. Fátima" assim, sem mais nem menos...Otexto tem mais muito mais...parece-me...sei lá...
(http://indeciso.blogs.sapo.pt)
(mailto:feet1@sapo.pt)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 13:31
Querida Lique, esta é apenas das muitas D. Fátimas, que andam por aqui, vivem para os outros, para os filhos, marido, netos, sem nunca receberem um carinho, uma atenção, um obrigado, porque afinal essa é a obrigação delas, dar, dar, dar... E infelizmente, acomodam-se a esse vidinha sem sentido, e vão-se deixando estar, mostram um sorriso nos lábios, quando o coração chora de frustração...Maria
(http://coisassimples.blogs.sapo.pt)
(mailto:branco_maria@hotmail.com)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 11:32
gargalhadas Lique , esta D. Fátima é imparável e há tantas assim...Obrigada pelas risadas que mandei, embora sejam casos sérios;) beijos:)***wind
</a>
(mailto:sagit_126@hotmail.com)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 10:42
Está excelente a tua descrição Lique. As D. Fátimas das vidas monótonas e rotineiras. Quanto ao teu comentário lá no Olimpo...Sabes bem que seria incapaz de prejudicar os meus amados lusos...aconteceu simplesmente..Zeus
(http://blogdezeus.blogs.sapo.pt/)
(mailto:z_olimpo@sapo.pt)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 10:40

lá estás tu embirrar com a "pobre" da D.Fátima, em vez de lhe elogiares o bronzeado e a família!... É por essa e por outras, que no emprego tens a fama que tens: invejosa e despeitada!... rsss

beijosDonBadalo
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(mailto:DonBadalo@sapo.pt)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 10:30
Por esta D. Fátima, que li, independentemente da sua real existência mas como sinédoque de tantas vidas anódinas,o meu agradecimento. Semana boa, Lique. ;-)*adesse
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De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 10:12
...a Dºa Fátima iria mais uma vez fazer aquilo que os outros esperavam dela e não aquilo que tinha vontade de fazer: atirar com os papéis e gritar bem alto que toda a vida havia trabalhado para os outros, de forma quase anónima...os problemas dos outros, o seu bem estar, os seus desejos...e ela? Sim e ela? alguém alguma vez se preocupara com ela? Com o que sentia, com o que esperava da vida?...Raios! E passou uma luz estranha pelos olhos de Dª Fátima: atirou com os papéis à engenheira, seguiu em passo firme até à secretária, agarrou na mala e saiu...Nunca mais ninguém viu a Dª Fátima mas hoje, todos se perguntam: afinal quem era a Dª Fátima, quais os desejos, as dores e as angústias daquela mulher?...tantas Dªs Fátimas Lique, tantas. Um beijinho grande para ti e para a tua bela história de vida real. Tem um dia bom amiga.
anomalia
(http://anomaliaanimalia.blogs.sapo.pt/)
(mailto:anomalia@sapo.pt)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 09:52
Adorei o texto Lique pela sua simplicidade e ironia, a D. Fátima fez-me lembrar a minha tia...que saudades que tenho dela, saudades do seu carinho, sempre disponivel para os outros e sem tempo para si própria, nem um pouquinho de sol teve direito sempre a servir a familia. O tempo para si era a cama e o sonho, enrolada na sua solidão
um beijo para todas as Donas Fátimas deste mundoeterea
</a>
(mailto:etereamente@sapo.pt)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 09:43
Excelente! Gostei mesmo de ler.b
(http://boxofficedocinema.blogs.sapo.pt)
(mailto:b@b.be)
De Anónimo a 5 de Julho de 2004 às 08:03
Tantas D. Fátimas que há por aí... E, contrariamente aquilo que possa parecer, que mulheres de força, né ? Beijo de boa semanainconformada
(http://palavrasapenas.blogs.sapo.pt)
(mailto:inconformada@sapo.pt)

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