Encontro JMC sentado num banco do jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais :
jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos como se a luz fosse excessiva. Um subtil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices.E deixámo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou um fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava directamente a casa. Ia, sim, para casa da sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas mãos as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra dizia.E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar,,,
- E o pai, sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel
- E porquê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém
Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois
De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.
Mia Couto, O fio das missangas
De Anónimo a 30 de Junho de 2004 às 21:27
Não conhecia, sabes? E fico-te grata pelo texto.deSaraComAmor
(http://oblogdalibelua.blogs.sapo.pt)
(mailto:desaracomamor@sapo.pt)
De Anónimo a 30 de Junho de 2004 às 00:28
Este texto situa-nos em ambiente tropical, não só de missangas mas de praia, de coqueiros e de mata na luz rubra do entardecer. Por que será que só os escritores , os pintores ou os músicos africanos sabem transmitir o ambiente suave das vivencias da África tropical. Vários europeus escrevem,pintam ou compõem, sobre Africa, mas nunca atingem a perfeição com que os naturais o fazem. Será a mística africana ? Lindo texto pela sua simplicidade africana.MAC
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(mailto:galileu60@hotmail.com)
De Anónimo a 29 de Junho de 2004 às 14:19
Encandescente: não é uma maravilha a escrita deste homem? Beijinhoslique
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(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 29 de Junho de 2004 às 11:27
lindo mesmoencandescente
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(mailto:encandescente@sapo.pt)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 21:28
Lindo, não é amiga? E é uma forma bem diferente, solta, gostosa de escrever. beijinhoslique
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(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 21:03
Foi graças ao enamoramento que tive pela escrita de Mia Couto que descobri a literatura africana de expressão portuguesa. Qualquer palavra que escrevesse, ficaria sempre aquém do que sinto. Claro que reli "o fio das missangas" com todo o prazer. ;-**adesse
(http://sulanorte.blogs.sapo.pt)
(mailto:skuld_m@hotmail.com)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 17:18
Armando: homem que gosta de posts compridos! Bom, o que pus lá em cima não é muito comprido, mas enfim... Obrigada pela tua apreciação do blog. Bjslique
(http://mulher50a60.blogs.sapo.pt)
(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 17:16
b: é verdade, Mia Couto tem um excepcional dom de uma escrita aparentemente simples mas de um sabor e colorido espantoso. Bjslique
(http://mulher50a60.blogs.sapo.pt)
(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 16:11
O conto retrata um homem feliz.... gozou que se fartou enquanto novo!!!Abençoado seja!!heheheheh Excelente ideia que tiveste em escolher hoje este conto de Mia Couto!! Sabes Lique...hoje estás de parabéns pelo extenso post, ao contrário de muitos leitores que só gostam de posts curtos eu adoro os posts longosssssss!!! E curiosamente lei-os e releio-os e volto por vezes a relê-los, mas olha que em poucos blogs o faço porque... qualidade literária é tão dificil de encontrar nos bloguitos de chacha que por ai abundam!!! Tú es de facto uma verdadeira e boa blogueira e prova disso ( e digo-o do coração) é a qualidade dos teus posts,numa só palavra... divinos!!!Armando
(http://portugalnoseupior.blogs.sapo.pt)
(mailto:pcmaia@sapo.pt)
De Anónimo a 28 de Junho de 2004 às 15:59
Muito bonito esse excerto. Há pessoas que têm um dom de escrever soberbo. De expressão escrita...b
(http://boxofficedocinema.blogs.sapo.pt)
(mailto:b@b.be)
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