Sexta-feira, 21 de Maio de 2004

Caminho da manhã

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Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. Á tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.



Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto

publicado por lique às 17:54
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22 comentários:
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 19:09
Lolita: os dias do silêncio também fazem falta. Por vezes são mesmo indispensáveis. Bom fim de semana, aniga!lique
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(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 19:07
TCA: obrigada. Vou tentar. De vez em quando, sai qualquer coisa. Bjs. Bom fim de semana.lique
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(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 19:06
maat7: obrigada a ti amiga. Tem um bom fim de semana!lique
</a>
(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 18:28
Gostei imenso do novo template. Hoje estou em dia de não palavras. Vou ver as tuas sugestãoes de blogues de fotografia. Um beijo para ti lique.atuaLolita
(http://levementerotico.blogs.sapo.pt/)
(mailto:violeta_2002@mail.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 14:56
Tens exactamente a mesma noção do texto do q eu...analfabeto
(http://analfabetosexual.blogs.sapo.pt)
(mailto:pp@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 14:24
muito bem escolhido. embora no post errado, gostava de te dizer que gostei muito do teu poema das borboletas. espero que escrevas mais.TCA
(http://riscos.blogs.sapo.pt)
(mailto:alvestc@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 12:02
é um texto revisitado.
sabe bem esta escrita.
obrigada, lique.
pelo silêncio e pelo amor.


um bfs,

bjs,


maat7maat7
(http://ardeoazul.blogs.sapo.pt)
(mailto:maat7@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 11:42
ognid: ainda bem que gostaste. Experimentei outros mas na verdade eu queria mesmo é que ficasse o mais simples possível. Beijinhoslique
(http://mulher50a60.blogs.sapo.pt)
(mailto:lique2@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 09:28
Uau!!!! Caganda pinta de template que aqui puseste. Uma pessoa distrai-se umas horitas e quando volta é isto :) está muito bonito. Simples mas elegante. Textos da Sophia são sempre óptimos mas hoje a novidade é o template. bjksognid
(http://catedral.blogs.sapo.pt)
(mailto:catedral.info@sapo.pt)
De Anónimo a 22 de Maio de 2004 às 08:39
Ema: ainda bem que gostaste do novo visual. Temos que mudar de vez em quando... senão isto é uma monotonia. O post... é a Sophia, pronto! Beijinhos. Bom fdslique
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(mailto:lique2@sapo.pt)

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