Rosas pretas
Noventa e quatro. porta encarnada. não deixes cair. não deixes cair. pronto molhou-se. a alma dela foi para o céu. não te sujes...a tua mãe... Mãeeeeeeeeeeeee. Nãooooooooo. porra a puta da cadela na vai parir os cães aqui. Jorgeeeeeeeeeeee. o que é que o senhor disse? Oh! Madalena tira esta merda daqui. foda-se outra vez a chover. Alberto, Alberto, Albeeeerto....MãeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeA boca entreabria-se num esgar. Sorriso amolecido na cara escorrendo numa baba transparente e grossa. Sorrindo o víamos nas tardes de fim de tarde quando a casa nos chamava e entre ela e a rua depois do trabalho...qualquer trabalho...se interpunha a rua cheia de gente com, precisamente, uma casa e um trabalho e entre o desejo do primeiro e a fuga do segundo, aquela ou uma outra rua apinhada de outras gentes nas mesmas condições de ir correndo entre. Nesses fins de tarde era que ele se sorria, ou era quando a gente não tinha tempo para o ver sorrir, mas via que ele estava sempre ali naquele meio recanto da loja, muito arrumado aquele monte de cartão e a manta de xadrez e o jornal. Havia sempre um jornal diário muito arrumado em cima da manta.
Na pressa de encurtar a distância do chegar a casa, a gente via, um bocadinho de todos os finais de cada uma tarde correndo entre, a gente ia vendo um dia mais um bocadinho que se enfiava num recanto do ver que às vezes era mais que olhar e deixava assim um quente em alguma parte do corpo da gente que corria entre o trabalho e a casa de recolha do cansaço. E quando esse ficar o corpo a levar o que tinha visto, fosse a baba, o cabelo pastoso e encanecido, a manta, o sorriso. Quando uma imagem qualquer se deslocava colada numa zona qualquer de quem passava, ficava aquilo a que se costuma chamar pena ou tristeza ou raiva ou alguma coisa assim dependendo de quem era a pessoa ou, mesmo, de que intervalo era o que se estava a passar naquele dia entre o trabalho e o rever a casa.
Tremias tanto, Alberto! Foda-se, a merda do jornal ficou de lado. Porra o jornal ficou torto. Arre a merda do jornal tem que ficar direito. Mãeeeeeeeeeeee. Ei! Ai! Olha aquele papagaio de papel do António rasgou-se. Mãeeeeeeeee. Mãeeeeeeeeeee.As mãos rebuscavam o jornal em gestos rápidos com desvelos. O rosto rasgava-se num rito de ansiedade. Uma voz aparou-lhe o rolar do seu constante pensar-falar-silêncio ruidoso.
- Senhor Alberto! Vamos comer a sopinha?!
Um olhar muito verde desfez-se-lhe de medroso em terno. As mãos pararam sobre as folhas de jornal muito novo, muito folha sobre entre folha. As mãos colocaram o jornal sobre o monte de manta e papelão. O jornal arrumado. O olhar muito verde muito sorriso sempre fixando aquela Senhor Alberto! Vamos comer a sopinha?! na cara rosada da D. Marieta de todos os fins de tarde que trazia sempre duas rosas bordadas nos olhos pretos.
Depois da sopa, ela levava as duas rosas que tinha bordadas cada uma no negro dos olhos e deixava-lhe uma luz que se aninhava num nele, no mesmo dele que vibrava sempre que pensava...estava sempre a pensar...e nesse pensar ouvia um ele que nem sabia se ainda era ele ou outro que lhe ficara despegado numa zona do ter sido; e essa luz que as duas rosas deixavam, brilhava no mesmo sítio de si de quando pensava em grito que era tão grito que nunca percebeu porque nunca nenhum dos que passava na rua, entre o trabalho e o ir para casa, lhe perguntou porque é que gritava assim
Mãeeeeeeeeeeeeeeeee.SeilaFoto:
Ognid[Hoje tenho comigo uma escritora extraordinária. Saboreiem o texto porque a escrita da Seila é para saborear, mesmo. Para mim é um duplo prazer porque a considero uma Mulher com letra grande e uma amiga. A bela foto é da autoria do artista de serviço. Obrigada aos dois]